30/08/2011

O CINEMA DE FELIPE M. GUERRA

Felipe M. Guerra, gaúcho radicado em São Paulo, prolífico realizador de cinema de guerrilha e crítico de cinema, nos conta aqui um pouco do seu processo de trabalho. Com diversos filmes de horror, curtas e longas na bagagem, passagem por diversos festivais e paixão incondicional pelo cinema que realiza, Felipe já esteve na mídia de diversos países e ganhou destaque com a criatividade que utiliza para driblar a falta de recursos financeiros em suas produções.



FAZENDO CINEMA INDEPENDENTE


Sempre realizei cinema de guerrilha - ou seja, no improviso e com dinheiro saído do meu próprio bolso. Não pago meus atores e atrizes, que são amigos ou familiares, e só invisto nas fitas (já que filmava em VHS, agora em mini-DV) e "efeitos especiais", volta-e-meia na alimentação da equipe quando a filmagem se estende demais. Nunca tive paciência para encarar a maratona burocrática que esses editais e leis de incentivo à cultura exigem, e também sou muito ansioso, então não conseguiria ficar esperando anos até que todo o processo se desenrole para que meu roteiro seja filmado. Eu prefiro filmar do meu jeito e como eu quiser. Até porque fico imaginando a cara do sujeito que seleciona os projetos recebendo meus roteiros com títulos como "Canibais & Solidão" e "Entrei em Pânico ao Saber o que Vocês Fizeram na Sexta-feira 13 do Verão Passado". Mas, falando como alguém que só conhece um dos lados desse processo, acho que a principal diferença é que o cinema de guerrilha exige que você pense em termos de publico, pois seu filme precisa ter algum tipo de retorno (venda de DVDs, principalmente) para que você recupere seu investimento e possa continuar produzindo. Especialmente no meu caso, já que sou eu que pago todas as contas. No caso de quem produz através das leis de incentivos fiscais, fica bem facinho para fazer o que der na telha sem pensar em retorno financeiro. Afinal, esses caras ganham o dinheiro do governo de mão beijada e não precisam se preocupar com bilheteria, nem mesmo com exibição; o filme já está pronto e com tudo pago, foda-se se vai chegar aos cinemas! Tem uns cineastas brasileiros que lançam filme novo a cada dois anos graças a essa mamata, e só se preocupam em participar de festivais, se vai passar nos cinemas ou sair em DVD depois é outra história. Penso que isso é fácil porque você termina seu filme sem ter gastado seu dinheiro e ao mesmo tempo sem dever nada a ninguém, não precisa nem dar uma contrapartida. O sistema todo devia mudar, contemplando também a questão da exibição do filme pronto. E deviam impor limitações para que certos diretores parassem de fazer qualquer merda com dinheiro do governo. Tipo, se o filme deu um prejuízo astronômico e foi visto por apenas meia dúzia de espectadores, os realizadores precisam devolver o dinheiro investido ou parte dele. Só assim para a coisa ser justa!





AS DIFICULDADES DE PRODUÇÃO


A principal é a falta de dinheiro. É óbvio que eu queria ter grana para pagar o pessoal que trabalha comigo e para fazer a coisa de maneira mais profissional. Como não tenho, o que faço é contar com a boa vontade da minha equipe e adaptar o projeto à minha realidade financeira. Em 2007, por exemplo, escrevi um roteiro de filme de zumbis. Por não ter recursos para filmar multidões de zumbis perambulando pela cidade, resolvi focar a narrativa nos personagens sobreviventes, e não nos mortos-vivos (e só não filmei esse roteiro porque teve uma overdose de filmes nacionais independentes com zumbis, então não quis ser repetitivo). Outro caso que me deixou muito chateado: sabe esse filme novo do Cláudio Torres, "O Homem do Futuro"? Pois em 1999 eu escrevi um argumento sobre um rapaz que voltava 10 anos no tempo para reconquistar a namorada que perdeu numa noite de réveillon. Meu projeto empacou primeiro porque eu nem imaginava como fazer os efeitos especiais do cara voltando no tempo, e segundo porque eu precisaria filmar as cenas "do passado" em 1999 e depois esperar uns cinco ou seis anos até a paisagem da minha cidade mudar (com novos prédios construídos), e só então filmar as cenas do "presente", caso contrário não teria como ilustrar que o personagem voltou 10 anos no tempo sem gastar uma fortuna em cenários! Só de pensar no trabalhão que isso me daria, acabei adiando o projeto. E agora o Cláudio Torres lança esse filme com argumento bem parecido, mas certamente uma história bem medíocre (o trailer, pelo menos, é horroroso), e inviabiliza o meu projeto, porque se eu for fazer agora, serei acusado de plágio! Então, infelizmente eu não posso sonhar muito alto por causa dessas limitações financeiras. Jornalistas vivem perguntando o que eu faria se tivesse um milhão de reais. Acho que não faria um filme caro, e sim vários pequenos filmes mais baratos. Eu jamais faria um "Avatar", não vejo sentido em gastar uma fortuna para recontar a mesma história manjada. E se do jeito que trabalho hoje não posso me dar ao luxo de realizar certas coisas, pelo menos continuo produzindo à minha maneira, com os recursos à disposição. Sempre achei isso melhor do que ficar apenas sonhando com o que eu poderia fazer se tivesse dinheiro, e, no fim, não fazer nada.




O MODUS OPERANDI DE FELIPE M. GUERRA

Nunca filmei roteiros de outros, tudo que fiz até hoje saiu da minha cabeça. E eu tenho tantas idéias que poderia viver escrevendo roteiros para os outros filmarem, se isso desse dinheiro aqui no Brasil. Geralmente eu trabalho em cima de um tema que gosto e tento adaptá-lo à realidade em que vivo e conheço, que é a vida no interior do Rio Grande do Sul. Não faço muitos tratamento do roteiro, mas ele é bastante modificado ao longo das filmagens. É comum surgirem novas idéias enquanto o filme está sendo feito, e o roteiro serve apenas como base. No caso do meu filme mais recente, "Entei em Pânico Parte 2", filmamos apenas uns 40% do roteiro, o resto foi tudo improvisado. Inclusive algumas das melhores idéias - como o personagem que é sempre ferido na mesma mão nos sucessivos encontros com o assassino - surgiram na hora de filmar. Eu não gosto de ficar preso ao roteiro, "engessado". Também não faço storyboards, prefiro filmar versões diferentes da mesma cena. Como eu mesmo vou editar, já tenho uma noção do que preciso, e prefiro ter material a mais do que a menos. "Entrei em Pânico Parte 2" tinha 30 horas de material gravado para um filme de 80 minutos. Só uma cena de matança coletiva, cheia de efeitos de maquiagem, consumiu cinco fitinhas - ou cinco horas! Qualquer outro editor arrancaria os cabelos, mas eu acho que a montagem flui melhor quando você tem várias opções para usar. Eu diria que filmo muito rápido e sem complicação, porque não uso iluminação profissional (apenas luz natural) nem boom (apenas o som captado pelo microfone da câmera). Sem isso, o processo todo ocorre bem mais rápido, sem tanta pentelhação. Se meus filmes demoram para ficar prontos (e "Entrei em Pânico Parte 2" demorou quase três anos só para terminar de filmar!), é porque os atores não são atores, então dependo da disponibilidade deles para podermos fazer as gravações. Mas quando o projeto é descomplicado, flui naturalmente. Meu curta "Extrema Unção", por exemplo, foi filmado em dois dias e custou apenas R$ 40,00, com uma equipe de cinco pessoas reunidas na casa da minha avó! E só numa exibição no Itaú Cultural, em São Paulo, ganhei cachê de 500 reais - ou seja, 12 vezes o que o filme custou!




DIVULGANDO O CINEMA INDEPENDENTE

Eu sou formado em jornalismo e sempre trabalhei na área, então tenho um mínimo de conhecimento sobre formas de marketing e divulgação. Meu longa de 2001 "Entrei em Pânico ao Saber o que Vocês Fizeram na Sexta-feira 13 do Verão Passado" é um dos filmes independentes brasileiros mais conhecidos e menos vistos de todos os tempos. O que eu fiz: naquela época, gravei umas 50 fitas (tempos de VHS) e mandei para tudo que era site, revista de cinema e emissora de TV do país. Não demorou muito para que começassem a falar sobre o filme. E aquele negócio tosco gravado na minha casa ao preço de R$ 250,00 e editado em dois videocassetes ganhou resenhas na revista SET e numa publicação sobre cinema fantástico da Espanha, chamada Fabulando Espantos; também apareceu numa porrada de sites e em programas de TV como o Fantástico e o Caldeirão do Huck. Hoje, com a internet, a divulgação do trabalho independente é muito fácil, bem mais do que no final dos anos 90, quando os fanzines eram o canal mais importante e você vivia de vender fitas pelo correio. O problema é que a mesma internet que divulga teu trabalho mais rapidamente também compromete o retorno do investimento. Se no passado você precisava comprar o filme do sujeito para assistir, ou no máximo conseguir uma cópia pirata de um amigo que comprou, hoje é muito fácil baixar qualquer filme na rede. E eu não sou hipócrita, porque baixo um montão de filmes também. Mesmo assim, acho errado você fazer download do filme do pobre sujeito que se matou para fazer um projeto pessoal com dinheiro do próprio bolso e que precisa vender DVDs para continuar filmando. Eu nunca baixei um filme do Petter Baiestorf ou do Rodrigo Aragão, por exemplo, porque sei que eles fazem cinema na raça e precisam ter retorno financeiro. Acho que a internet, hoje, poderia ser usada como termômetro para produtores selecionarem novos projetos para investir. Isso acontece muito no exterior. O Sam Raimi viu o curta "Ataque de Pânico", do uruguaio Federico Alvarez, no YouTube, gostou e resolveu bancar o próximo filme do cara lá em Hollywood. A internet e o YouTube se transformaram numa importante vitrine para descobrir pessoas que fazem coisas criativas com poucos recursos, mas aqui no Brasil, infelizmente, ninguém dá bola para isso ainda. Quer um exemplo? Tem um site aqui no país chamado Filmow, que é uma rede social reunindo cinéfilos do Brasil inteiro. Esse site seria uma bela forma para analisar o que o público quer e não quer ver. Por curiosidade, eu cadastrei meus filmes ali. Pois se você acessar o Filmow hoje e for à ficha do meu filme "Entrei em Pânico Parte 2", vai descobrir que 1.035 dos usuários marcaram "Quero ver", e foram publicados 694 comentários sobre ele. Como curiosidade, procure no mesmo site as fichas dos filmes que venceram o Festival de Cinema de Gramado de 2010: "Bróder" (premiado do júri) tem 704 "Quero ver" e 91 comentários; "180 Graus" (vencedor do júri popular) tem míseros 38 "Quero ver" e apenas DOIS comentários. Sendo que "Bróder" teve lançamento nacional em poucas salas e esse último nem chegou aos cinemas! Agora pensa comigo: se você fosse um executivo de cinema e quisesse investir no novo filme de um diretor ainda desconhecido, e querendo conseguir retorno financeiro, será que não teria uma bela idéia sobre o que o público quer e não quer ver entrando no Filmow e analisando esses exemplos acima?




ENTREI EM PÂNICO AO SABER O QUE VOCÊS FIZERAM NA SEXTA-FEIRA 13 DO VERÃO PASSADO 2


A repercussão do filme está bem interessante. Eu tinha medo do que poderia acontecer pelo fato de ser uma continuação de um filme amador feito 10 anos atrás e que quase ninguém viu. Mas a obra vem chamando a atenção justamente pelo título estapafúrdio, e por ser um slasher movie produzido no interior do Rio Grande do Sul. O filme estreou no Fantaspoa, em Porto Alegre, no começo de julho, e, mesmo sendo uma noite de frio glacial, a sala ficou superlotada, com pessoas sentadas na escada. No final do mesmo mês, "Entrei em Pânico 2" foi exibido no RioFan, no Rio de Janeiro, e fiquei muito surpreso ao saber que foi eleito o terceiro melhor filme pelo júri popular, perdendo apenas para "The Woman", do Lucky McKee, e "A Noite do Chupacabras", do Rodrigo Aragão, mas ganhando de gente mais conceituada e premiada mundo afora, como Alex de la Iglesia e Simon Rumley, cujos filmes também foram exibidos no festival. Infelizmente, ainda há um pouco (talvez um muito) de preconceito nos festivais de cinema brasileiros em relação a filmes gravados em mídias "alternativas" (no meu caso, mini-DV). Alguns não aceitam nada que não seja em HD, ou mesmo em película, o que limita bastante a visibilidade de obras como essa minha. Mas não posso me queixar, pois são grandes as possibilidades de "Entrei em Pânico Parte 2" ser exibido em festivais de gênero no exterior ainda este ano, o que para mim já será uma grande conquista, pois é meu primeiro filme passando no exterior!




PRÓXIMOS PROJETOS

Meu próximo longa deverá ser um road movie sobre dois rapazes que procuram a amada de um deles pelas praias do litoral gaúcho. É meu primeiro roteiro sem mortes nem sangue, e resolvi filmá-lo porque várias pessoas me falaram, sobre "Entrei em Pânico Parte 2", que a melhor coisa do filme eram as cenas com os personagens ANTES que começassem os assassinatos. Então pretendo filmar essa pequena comédia romântica que deve sair bem barata e será focada nas relações entre os personagens e nos diálogos, e não na matança. Também estou produzindo um longa de horror que será dividido em três episódios, todos eles influenciados por histórias do imaginário popular da Serra Gaúcha. Um dos episódios será escrito e dirigido por mim, e os outros dois pelos meus amigos Eliseu Demari e Rafael Giovanella. É algo para ser filmado rápido, com o objetivo de estrear já em 2012. Além disso, tenho meu projeto dos sonhos que só será realizado quando eu tiver dinheiro e recursos: uma homenagem aos westerns italianos, filmada no interior do Rio Grande do Sul e ambientada no final do século 19, na época do início da imigração italiana no Estado. Como a trama exige um mínimo de reconstituição de época e cenas mais complicadas de ação, com armas e tiroteios, só vou filmar esse roteiro (que tenho guardado desde 2007) quando estiver com uma boa graninha em caixa. Portanto, me ajudem: comprem os DVDs dos meus filmes ao invés de pedir onde tem para baixar!!! Também tenho várias idéias para curtas que podem ser produzidos a custo quase zero, no estilo do meu "Extrema Unção". Para esses só me falta mesmo o tempo, já que eu acabo me dedicando a outras coisas e sempre adio esses projetos mais fáceis...





E eis aqui um tira gosto do trabalho de Felipe M. Guerra, o curta EXTREMA UNÇÃO, dividido em duas partes:



E uma entrevista exclusiva dada ao Programa Fantástico da Rede Globo em 2002:


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